quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Destes tempos em Aguardo

DE COMO UM ESCRITOR CONSEGUE, A PARTIR DE SUA REALIDADE, DECODIFICAR O MUNDO E O HOMEM

Há algumas questões acerca da Literatura que merecem respostas, embora se vá discutir toda uma vida a respeito do que é ou não é um texto literário, se o poema tem ou não poesia, se o romance chega ou não ao seu objetivo, que também é algo a se discutir: qual o objetivo de um romance.

Numa mesa-redonda acontecida em agosto deste ano, cujo tema era a poesia blumenauense, dois de seus participantes defenderam que em tempos de pós-modernidade tecnológica não se pode mais falar sobre um texto de aqui ou acolé. Dessa forma, portanto, não poderíamos determinar um texto através do lugar onde ele é escrito. Um dos participantes, José Endoença Martins, defendeu o lugar de origem do texto, de modo que sua localização pode determinar sua importância para os leitores daquele local de origem. Pois bem, aceito essa visão para continuar a escrever este texto.

Para quem já tinha assistido às peças de Gregory Haertel, seu romance talvez tenha sido menos doloroso. Mas acredito que poucos tiveram, até então, a oportunidade de ler Haertel. Muitos de nós assistimos às suas personagens mergulhadas nas próprias dores, cientes ou não de suas insanidades. Assim, parece redundante querer escrever sobre como Aguardo, o primeiro romance do autor de peças como A Parte Doente e Volúpia, pode remexer conceitos e estômagos. No entanto, é preciso falar a respeito.

Aguardo desestrutura. Sua própria estrutura narrativa, assemelhando-se ora a uma novela, ora a um livro de contos, o torna uma obra singular. Mas não é somente a estrutura do texto e sua belíssima composição que agradam. Pra quem espera mais, lá está: Haertel, escrevendo sobre sua cidade imaginária, com personagens imaginárias (ou não, claro está) ao mesmo tempo em que desconstrói o mito há muito tempo enraizado, por estas bandas, de que nosso passado é belo, indolor, e nosso presente é fértil, também conta uma bela história para ser lida em qualquer canto do mundo.

“Não obstante toda dor, há sempre o que piorar”, escreve Pépe Sedrez na orelha de Aguardo. De fato: se há um consenso a respeito do sentido de escrever e ler literatura, este se encontra na capacidade de a) o autor, a figura alienígena da sociedade, conseguir pôr em palavras o que o incomoda e b) o leitor, necessitado de um ponto de vista ficcional, procurar uma saída na literatura. Literatura sem dor, portanto, o que seria? Aguardo é incômodo, é não saber se situar entre personagens, entre os rumos indevidos (porque tão reais e necessários) que a história toma e, sobretudo, não querer se encontrar nas páginas do romance.

É aqui, então, que volto a uma das primeiras questões deste texto. Ouso, para isso, citar este romance Aguardo, de Haertel, como a obra que a prosa blumenauense necessitava para se sentir, de fato, literatura. Indiretamente ligado a um passado fértil da prosa ficcional, que tem origem, principalmente, no texto de Urda Kluger — e mais recentemente na obra policial de Maicon Tenfen — Gregory aponta para um futuro promissor na literatura. O que não quer dizer que este autor prometa, porque mais cumpre do que realmente promete; mas que, de certa forma, Aguardo tem o poder de, ao mesmo tempo em que mira diretamente para as origens de seu autor, afastar-se dessas mesmas origens para justamente evitar qualquer tipo de descrição inglória: sua literatura não é daqui, não é dali. É literatura e é boa.

Encontrando-me com e enfrentando as personagens de Haertel, não consigo parar de pensar em dois autores franceses que admiro muito. De um lado, Camus denuncia o absurdo do homem e da sociedade ocidental do século XX a partir de histórias cotidianas, sempre tão bem metaforizadas que — hoje se vê — não importam as localizações geográficas e culturais de seus leitores: o absurdo não tem idioma. Justaposto a este, Nizan aproveita-se de uma viagem à cidade de Aden, no Iêmen, para denunciar a sociedade francesa e, mesmo que depois de trinta anos, ser um dos principais inspiradores da revolução cultural causada pelo Maio de 68.

Se não dou pistas de onde Aguardo chega e de onde sua leitura nos leva, é para não tirar do leitor a oportunidade de ler um romance que há muito era aguardado. E que finalmente chegou.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A literatura sobrevive e, às vezes, protagoniza.

Santa Catarina, eu repito, não é um estado de espírito. Preciso provar? Pois bem, então o faço através deste relato a respeito do I Encontro de Literatura e Artes e do III Fórum Brasileiro de Literatura de Blumenau, acontecido no passado mês de agosto.

Idealizado pelas professoras Tuca Ribeiro e Marilene Schramm, o evento foi acolhido pela FURB – Universidade Regional de Blumenau, pela Fundação Fritz Müller e pela Fundação Cultural de Blumenau, com o apoio da SEB – Sociedade Escritores de Blumenau.

FICÇÃO, LEITURA E IDENTIDADE

Foi com este tema que o escritor Godofredo de Oliveira Neto, blumenauense radicado no Rio de Janeiro, começou o evento. Godofredo, um dos maiores autores paridos por este estado e, atualmente, um dos maiores nomes da literatura brasileira, teve uma fala rica em reflexões a respeito da identidade do escritor e do leitor.

Autor de romances importantes na bibliografia nacional, como Pedaço de Santo e O Menino Oculto, Godofredo saiu aos 17 anos de Blumenau. Foi para a França, voltou, e já vive há bastante tempo no Rio. Mas o que isso teria a ver, afinal, com a sua escrita e a relação desta com o solo blumenauense? Talvez sejam necessárias raízes para se escrever e talvez essas raízes tenham importância desigual na composição literária.

Nada melhor para provar que, de fato, a relação do escritor com suas origens influenciam o seu texto. Para quem já o leu, é clara o contato que Godofredo mantém com terras catarinenses. E imagino que O Bruxo do Contestado, o primeiro romance famoso do autor, exemplifique o que tento dizer.

E O DIABO?

Boa pergunta. Muito boa mesmo! Pois que ele, o Diabo, talvez nunca tenha sido tão estudado e respeitado antes. É que a Profa. Dra. Salma Ferraz, da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, grande estudiosa literária influenciada e protagonista em terras brasileiras da Teopoética (estudos comparados de literatura e teologia) veio nos falar sobre As Malasartes do Diabo na Literatura Ocidental.

Salma fez um panorama, portanto, comparando os estudos literários que remetem ao Santíssimo (falo de Deus), mas que dificilmente remetem ao tinhoso. Explanando, portanto, a Bíblia, a Torá e o Corão, partindo daí para análises de teólogos a respeito da figura do Diabo, utilizando-se também de algumas súmulas católicas e finalmente retomando análises literárias, Salma nos mostra que o Diabo, afinal, não somente é parte importante e necessária da fé ocidental, como uma grande figura merecedora de análise.

Ao final de sua fala (uma hora e meia sem respirar — fala substancial, sem dúvida — Salma lançou seu novo livro de ficção. Depois de O Ateu Ambulante, livro recheado de contos premiados e, por assim dizer, questionadores, Salma lança um livro mórbido. A Ceia dos Mortos não poderia falar sobre outra coisa se não sobre morte. O que se lê, adianto, são variações sobre o mesmo inevitável tema. E variações variadas, contundentes, merecedoras de leitura.

TEM LUGAR PRA POESIA?

Tem sim, leitor. Na terceira noite do evento, aconteceu a mesa-redonda Poesia Blumenauense: De Onde Viemos, Para Onde Vamos, onde tive o prazer de compartilhar a fala com grandes autores, merecedores de leitura e atenção. Ali estavam, portanto, o Prof. Dr. José Endoença Martins, o Ms. Marcelo Steil, o poeta Mauro Galvão e este que vos escreve, Marcelo Labes.

Falando sobre a poesia produzida em Blumenau desde o século XIX, quando ainda era escrita em língua alemã, Marcelo Steil construiu sua fala sobre as noções marxistas de ideologia os respectivos reflexos desta na criação literária. Em seguida, rompendo estruturas, o professor José Endoença Martins referiu-se não somente à teoria de sua autoria sobre a poesia blumenauense, como foi além, reconstruindo sua carreira poética e acadêmica, chegando à pós-modernidade e explicando, por exemplo, estudos seus sobre negrice, negritude e negritice.

Em seguida, Mauro Galvão contemplou a pós-modernidade presente em seu texto, mas principalmente refletiu a necessidade de se ler, seja lá o que for, incluindo aí a quebra de limites imposta pela internet e seus possíveis reflexos na leitura do objeto-livro e nos hábitos de leitura e escrita da contemporaneidade.

Finalizando, foi a minha vez de falar e não podia perder a oportunidade de explicar às pessoas que nos ouviam que, baseado no que tinha ouvido nos dois dias anteriores, a leitura dos poetas que me acompanhavam na mesa-redonda não era somente necessária, mas obrigatória. Não porque eles precisem vender livros, mas porque precisamos de leitores críticos. Dessa forma, uma vez que tratamos de literatura blumenauense, imagino que seja um caminho interessante iniciar a crítica a partir de nossa realidade.

UM EVENTO QUE AINDA PROMETE

A professora Tuca Ribeiro não escondeu suas intenções. “Queremos iniciar aqui uma nova Jornada Literária, uma nova FLIP”. De fato, o primeiro passo foi bem dado. Discutindo leitura, identidade, ficção, o diabo na literatura ou os caminhos da poesia escrita em Blumenau, imagino que possamos ter participado de algo maior.

A partir do momento em que o pontapé inicial foi dado, resta-nos esperar pelo ano que vem para sabermos o que de fato acontecerá. De qualquer forma, o que ficou claro durante este evento é que não há somente pessoas interessadas em discutir literatura, conforme as pessoas presentes que falaram a respeito de seus e outros textos. Sobretudo, e digo isso baseado nos presentes, há pessoas interessadas em ouvir o que se tem a dizer a respeito do texto literário. Dessa forma, o que se pode esperar é que a semente germine. Germine e dê frutos e se torne uma grande árvore. Árvore de textos ou qualquer coisa assim.

Publicado originalmente no Overmundo.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

FICÇÃO, LEITURA E IDENTIDADE



26 a 29 de agosto de 2008

CONVITE

Nos dias 26, 27, 28 e 29 de agosto do corrente ano, a FURB, em parceria com a Fundação Fritz Müller, realizará o 1º Encontro de Leitura e Arte de Santa Catarina e o 3º Fórum Brasileiro de Literatura de Blumenau. O evento ocorrerá nas dependências da Fundação Cultural de Blumenau e na FURB, conforme cronograma abaixo.
Convidamos você a participar do evento e divulgá-lo amplamente.
É uma oportunidade para incentivar a formação de leitores críticos e apreciadores de literatura, artes visuais, música e teatro.

Programação

1o. Encontro de Leitura e Arte de Santa Catarina e

3o. Fórum Brasileiro de Literatura de Blumenau

18:30 – FCBLU

26/08/08 – Abertura

Palestra: Blumenau – Ficção, paixão, identidade.

Dr. Godofredo de Oliveira Neto

27/08/08

Palestra: As malasartes do diabo na literatura ocidental

Dra. Salma Ferraz

Noite de autógrafos

28/08/08 - Mesa redonda:

Poesia blumenauense – de onde viemos, para onde vamos

Marcelo Labes, Dr. José Endoença Martins, Ms. Marcelo Steil, Mauro Galvão

Noite de autógrafos

14:00 – FCBLU

29/08/08 – Abertura da exposição “Ler é pra cima”

19:00 – Auditório Bloco T – FURB

29/08/08 – Palestra:

Moving Beyond Plateau – from Intermediate to Advanced Levels in Language Learning

Daniela A. Meyer

Inscrições: www.ffmblu.com.br ---- Informações: cce@furb.br - (47) 3321 0251
Coordenadoras: Maria José Ribeiro, Marilene de Lima Körting Schramm.

Deu pra ver ali a mesa-redonda? Pois bem, ela acontece justamente como complemento (ou contrapartida) do Projeto Falações. Antes de apresentar os integrantes da mesa, é necessário um agradecimento especial às professoras coordenadoras do evento, Tuca Ribeiro e Marilene Schramm, que adotaram a idéia da mesa-redonda, proveniente do projeto Falações, como parte integrante e necessária para o debate em torno da literatura.

Pois bem, participarão da mesa, portanto, quatro escritores de Blumenau que têm em comum publicações em poesia. No entanto, é preciso fazer a justa ressalva de que este colóquio inicial sente falta de algumas pessoas; mas pode ser o ponto inicial para uma série de conversas a respeito da produção literária a partir de Blumenau.

Dos participantes:

Foram convidados a integrar a mesa pessoas que podem ser consideradas peças-chave da poesia em Blumenau. A começar, portanto, a apresentação destes debatedores, elucido seus contatos com a cronologia da literatura blumenauense, para ficar claro.

Marcelo Steil, além da conhecida e respeitada produção poética na década de 1990 (de quando datam alguns das mais importantes obras literárias desta região), Steil também pôs-se a pesquisar a literatura em língua alemã escrita no Brasil no século XIX. Ao lado de Valburga Huber, Steil é um dos pesquisadores que com maior segurança pode falar a respeito deste fenômeno imigrante que foram a produção poética e o silenciamente ocasionado pelos ideais do Estado Novo, de Vargas.

José Endoença Martins é poeta, escritor e dramaturgo. Não bastasse, é o grande teórico da produção literária em Blumenau. Emprestando conceitos como Deutschtum e Brasilianertum, Saudade e Esperança, de Huber e Steil, Endoença questiona a Blumenalva e a Nauemblu, correntes teórico-literárias opostas e dependentes uma da outra. Figura, hoje, como um dos maiores poetas de Santa Catarina.

Mauro Galvão, ao lado de Steil e Endoença, integrou o grupo de poetas experimentalistas da década de 1990. Tendo publicado seu último livro em 2002, tem muito a compartilhar a respeito de poesia. Com uma escrita seca e de alta informatividade, Galvão encontra-se dentre os escritores pós-modernos catarinenses; embora respeitado pela crítica, ainda merece aprofundamentos em sua literatura.

Marcelo Labes é este que vos escreve. Com uma participação quase-ativa na internet, publicou seu primeiro livro neste ano de 2008. Otimista, acredita que ainda há muito que se ler em Santa Catarina. Isso porque leitura quase sempre acaba em escrita. E escrita sobre a leitura, que é o que se faz aqui, é uma das melhores maneiras de se aprimorar a escrita da crítica e dos respectivos escritores. Por isso, enquanto não se decepciona, procura construir debates sóbrios a respeito da produção literária catarinense.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Poesia Twist, por Rodrigo Oliveira

A verdadeira surpresa surge quando alguém que escreve passa a comentar a escrita do outro. Leitores atentos, os há em cada canto, claro! Mas Rodrigo Oliveira foi além de um leitor atento e escreveu o texto a seguir sobre Falações:

Poesia Twist. Poesia com um toque de limão.

Quando eu era bem mais novo, havia um limoeiro em minha casa. Pequeninho, mas dava uns limõezinhos. E lá ia eu, catava um limão e, não muito esperto, chupava. Era azedo. Não tinha jeito de chupar aquilo sem fazer careta. E se tinha um corte ou uma afta na boca, pior ainda. Aquilo ardia como os diabos. E o pior é que depois de tudo isso, não tinha como não repetir o processo. E eu ficava ali. Chupava o limão azedo, fazia careta, ardia, mas continuava. Excluindo-se a possibilidade de eu ter sido uma criança não muito esperta ou possíveis tendências masoquistas, é mais ou menos isso que aconteceu quando comecei a folhear Falações, livro de poemas de Marcelo Labes.

Não foi fácil ler Falações sem fazer careta. Labes destila um suco ácido e, com freqüência, azedo. E eu cá com minhas aftas e cortes, volta e meia senti arder os versos do autor. Falações se divide em quatro momentos distintos. Altenatintas abre com o solitário Até Quando e já pincela os primeiros elementos melancólicos que vêm se repetir mais tarde, e lembra, com uma escada 'reta em caracol', que “não se pode voltar atrás / quando se diz que ama”. Fiação e Tecelagem traz a acidez na leitura da vida operária “de 8 horas trabalhadas / e 16 de aflição” que termina com “casa na praia encostada / carro do ano passado / e plena realização: / artrite artrose bursite / aposentadoria e caixão”. É seguido pelo azedo Manhã, difícil de engolir como a constatação “Por que não respondes? / Meu Deus, / estás fria!”. No capítulo se destaca ainda O Barco, que atenta em letras garrafais “NUMA CIDADE VITRINE / FORA DE TOM É PECADO”, num retrato de um barco que “porque não navega / não pode ser afundado”. Este poema, ao lado de Fiação e Tecelagem, torna difícil sair de manhã e não rever suas linhas na nas ruas da cidade. Mas ainda assim, tudo parece passar voando, quase despercebido pela maioria. Como descobre Passarinho com seu final seco e despreocupado “Que foi isso? / e virou-se para o lado. / Passarinho na janela, / disse ela”. Assim fica mais fácil concordar com o narrador em Bi-bap-dera-nudara, que pede: “Acende, Maria, o pavio / e deixa a vida explodir”. O capítulo encerra escarrando suas verdades, tentando aparentemente expeli-las, livrar-se delas com Expectorante, que tenta com força “Cuspir fora saudade, lembranças. / Cuspir fora saudade, tristeza. / Cuspir e ver escorregar. / Verde”.

Em Reflexscintos destaco o lírico Canção que parece, junto com Sapiência Cartesia uma tentativa do autor, não em definir-se, mas em encontrar-se. Chamou-me a atenção o fato de que, nos dois poemas, o poeta o é, através dos outros, nunca de si mesmo. Em Canção “Eu me chamo aquilo que dizes”, “Eu me chamo o nome que vais dizer”, “Eu chamo / a tua alegria / ao repetires o som / do meu nome” e em Sapiência Cartesiana “E os que me querem saber / acabam me sendo. / Sou todos os que me sabem eu”. O poeta, procurando encontrar-se, perde-se (ou finalmente encontra-se) no leitor. O autor deixa-se arrebatar novamente pela estética crua, curta e grossa no impactante In Vitro que encerra o beijo com trinta e dois dentes quebrados. A saudade também deixa sua acidez em Ontem e Simplificante, uma saudade que arde como limão em boca machucada.

Febres traz uma série de dez poemas. O capítulo tem, evidentemente, certa unidade semântica e mesmo estética, mas esta é solta, flertando com o non sense, os poemas bastante independentes. Dentre as febres de Labes, chamo atenção para Febre#07 onde o tornar-se adulto é chato mas sem remédio, Febre#08 com o poeta em busca do grande poema, mas termina entregando-se “escreveria o grande poema / se soubesse por que”. O ótimo Febre#10 retorna com toda a acidez e inunda nossas chagas com o ardor da constatação: “Caíram-me os pêlos, / a origem insiste. / Bicho”. Febre#12 retoma o ataque ao “Produto financiado / por bandas de rock inglês / e poetas franceses / que não compreendes”.

Por fim, intransiGENTES, encerra os capítulos num apanhado da obra. para paula (assim, em minúsculo mesmo) brinca com as palavras “plantandolorosamente um canto”. O Filósofoso “Tentou viver de idéias / e morreu de fome” e acabou por “pôr para fora as verdades / que só a ele pertenciam, e mais ninguém”. Em Iminência percebe-se “Que não valia a pena / viver sob certas iminências” e nos afogamos junto com os personagens. Mas em Findados o narrador ensina: “Vós, que morrestes, o mundo, / o mundo é sempre dos vivos”. E retoma com Cíclico sobre aqueles que se deixaram afogar: “(e há uma semana enterrado, / o que terá pensado / quando o primeiro verme matutino / veio lhe perfurar a coxa)”. Ainda assim Fatalidade parece lembrar que esse mesmo afogamento é inevitável: “Causa mortis: afogamento: não parava de chorar.” Retomando estas constatações Ratos encerra rápido, dinâmico (quase musical) e ainda ácido um apanhado de verdades roídas e a presciência “Vai ter pesadelo, filhinho / e acordar com a cara inchada”.

A obra conta ainda com um ensaio de José Endoença Martins, localizando Labes dentre os poetas blumenauenses. Vale a pena ler até para descobrir novos nomes da poesia de Blumenau.

Ao espremer Falações, o leitor deve também se deparar com o mesmo sumo ácido que me chamou a atenção. E cuidado: se você também tiver algumas fissuras, a leitura pode lhe arder à boca. Se há algo de doce em Falações — e há, sem dúvida — serve para aumentar o contraste com a acidez da obra. Mas se você for como eu, vai perceber que não é tão fácil largar Falações, mesmo fazendo careta. Talvez a resposta não esteja impressa no livro, mas uma pista descobri na página de rosto. Adquiri o livro do próprio autor, no lançamento, com o devido autógrafo e dedicatória. Como de costume, só li a dedicatória em casa, quando fui dar as primeiras folheadas no livro, no dia seguinte. E lá estava, na caligrafia de Labes: “Eu insisto: há que se escrever, há que se escrever mais. Vamos, então, adiante”. Talvez seja isso. Ainda que tenhamos o azedume e a acidez dos limões, é preciso escrever. É preciso ler. Afinal, como dizem por aí, se a vida nos dá a acidez dos limões, façamos, pois, limonada. Ou poesia.


Como não me canso de falar, a grande proposta deste blog ou do projeto que deu origem ao livro é a discussão sobre literatura. Que a discussão nos fortaleça, então!


quinta-feira, 31 de julho de 2008

O Detetive de Florianópolis

Há 25 anos, surgia nas páginas dO Estado uma figura que se tornaria lendária entre leitores assíduos de literatura de suspense. Hoje, se vê que O Detetive de Florianópolis, do escritor catarinense Jair Francisco Hamms, ia muito além de pregar o leitor em suas páginas.

Se Bagé tem o seu analista e Curitiba tem o seu vampiro, Florianópolis não fica atrás. Data de 1983 a compilação de crônicas O Detetive de Florianópolis, de Jair Francisco Hamms.

Da ironia ao escracho, acompanhamos, do surgimento ao casamento, o “desempregado, endividado, nervoso, aporrinhado à beça, Domingos Tertuliano Tive”, D.T. Tive – detetive particular. Em dez crônicas, Hamms consegue fazer rir, rir muito, e ainda nos deixa com gosto de quero mais, depois que Tive casa-se com a sua... bem, não é interessante entregar o jogo, ainda mais em caso de investigação.

A semelhança com O Analista de Bagé surge desde a capa. Publicado cinco anos antes por Luis Fernando Veríssimo, O Analista também surgiu primeiro em jornais, para depois ocupar as páginas do livro que todos conhecemos. No entanto, não vão muito longe as semelhanças: o personagem de Hamms é astuto, sedutor e em diversas ocasiões, um galanteador refinado.

Se precisávamos de um herói catarinense que agradasse a muitos gostos, ele está ali. É o tipo que acorda, olha pela janela, sabe que precisa se mexer e não consegue sair da cama. Conversando com seus botões, ouve de um deles o conselho: “Que eu saiba, a cidade não tem um só detetive particular”. Dessa forma, com dinheiro emprestado, Tive inicia uma carreira promissora e cheia de situações embaraçosas, nunca menos engraçadas.

Dessa forma, começa a investigar crimes os mais bizarros, como o caso da morte do lebréu russo, do lobisomem de Saco Grande, dos dólares de Chapecó... Acompanhado pela piramidal secretária Ivete, Tive muito simplesmente resolve casos que, às vezes, não precisam de muito esforço; é aí que faz sucesso e fortuna. Para importunar — porque sempre alguém vem encher o saco — temos ali o Pereira, piadista de mau-gosto que procura tirar o brilho de nosso herói. Às vezes quase consegue, mas Tive não se deixa enrolar. Ah, isso não.

O mais instigante na obra de Hamms é que não podemos chamá-lo simplesmente como “o cara do detetive”. Pelo título do livro, pelas primeiras dez crônicas, até que sim. Mas não pelo todo. Este livro, por exemplo, traz mais 21 crônicas onde o autor mostra como consegue narrar sensivelmente casos (reais ou inventados) do cotidiano. Uma pena que não consigamos encontrá-lo nas livrarias.

Mas Hamms é cultuado pelos leitores assíduos de literatura de suspense. Não à toa: unir uma boa história a bom-humor não é pra qualquer um. Na internet, o escritor catarinense aparece em sites de sebos e raridades, onde é possível comprar O Detetive... a partir de R$10,00. O meu exemplar, comprei por R$3,00 num sebo de Blumenau.

Não se trata somente de ler Hamms, de se divertir com as aventuras de seu personagem. Trata-se de refletir um pouco o mercado (?) editorial de e em Santa Catarina. Hamms, que eu saiba, não escreveu por muito tempo. Mas o que escreveu é bom. Por que teria desistido? Seria pela falta de leitores? Seria por ver seus livros acabarem-se nos sebos antes mesmo de serem lidos, discutidos, lembrados? Sem dúvida, poderíamos perguntar a D.T. Tive onde foi parar o escritor que, com um livro apenas, fez história. Se Tive ainda existisse, claro. Mas ficou lá, nas páginas amareladas de 25 anos atrás.

A edição única de O Detetive de Florianópolis foi publicada em parceria entre O Estado, onde foram publicadas inicialmente as crônicas e a Editora da UFSC. Pesquisando por aqui, na internet, encontrei mais alguns livros de Hamms: O Vendedor de Maravilhas, Samba no Céu e um outro, de que não me recordo. Para comprar pela internet, há disponíveis os sites Gojaba.com e o Traça.

Boa leitura!

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Falações a respeito de Falações

Falações foi lançado no último dia 22. Neste post, que não expirará ou será substituído, pelo menos por enquanto, tentarei compartilhar o que se disse a respeito do livro. Por enquanto, então, deixo os comentários publicados no Jornal de Santa Catarina, em A Notícia e no Diário Catarinense.

Logo, espero redirecionar para outras paragens. Mesmo porque há muito sobre o que falar. Temos, por exemplo, os 25 anos do Detetive de Florianópolis; temos Gregory Haertel com o romance Aguardo, romace há muito esperado por estas terras de cá e temos de apresentar, para quem ainda não conhece, o escritor catarioca Godofredo de Oliveira Neto, que estará em Blumenau no mês de agosto. Mas isso são planos.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Falações - onde adquirir o seu

Falações será lançado somente na terça-feira, dia 22, mas já está disponível para compra.

Em Blumenau, o livro pode ser encontrado na 100% Vídeo (Rua 7 de Setembro, 1820 - esquina com Rua Paulo Zimmermann) e nas duas lojas da Livraria Alemã (Mega Store da Amadeu da Luz e no Shopping Neumarkt) e na Blulivros, no 2o. andar do Shopping H.

Para quem é de fora e quiser adquirir seu exemplar, ele está disponível no site da Edifurb. Quem vende são as Livraria Cultura, Livros & Livros, Saraiva, Leonardo da Vinci e Cia. dos Livros através de compra on-line. E ATENÇÃO: descontão na livraria Poïesis. Clique aqui para saber.

Quem quiser contatar o autor - o livro é vendido a preço promocional - pode fazê-lo através do e-mail labesmar@gmail.com .

Pois bem. Ainda nos vemos terça-feira!

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Falações - Lançamento




FALAÇÕES - POEMAS

Falações pretende ser mais do que um livro. Não é a toa que tem o mesmo nome deste blog — e o projeto, de mesmo nome. Sem a pretensão de quebrar alguns paradigmas para depois construir outros, o que está em jogo é a discussão. Talvez não valha a pena tratar agora de questões espirituais (do que é feita a poesia, do que é feito o poeta), mas focar em outros pontos: existe uma produção literária interessante em Blumenau? A poesia está viva, morta, moribunda? E poeta, quem pode ser?

Para tais questões, este blog está aberto. Aliás, tenho sabido ultimamente que muito mais pessoas acompanham este espaço do que eu supunha. E, tenho percebido, a discussão em torno da produção literária local não está longe de acontecer de forma sadia — e ao contrário do que se pudesse supor, tem muita gente a fim de conversar a respeito.

Livro pronto, esperando o lançamento, é hora de anunciar o que está por vir. No início de agosto, acontecerá no SESC Blumenau a oficina “Poesia blumenauense: de onde viemos, para onde vamos”. Este poderá ser um espaço interessante para que o diálogo, que já começou, tome forma. Tratarei, nesta ocasião, de estabelecer a cronologia desta produção poética e buscar compreendê-la através das teorias de Valburga Huber e José Endoença Martins.

A seguir, ainda no mês de agosto, acontecerá durante I Encontro de Leitura e Artes de Santa Catarina e III Fórum Brasileiro de Literatura de Blumenau uma mesa redonda. Nesta ocasião, com as presenças já confirmadas de José Endoença Martins e Mauro Galvão, se falará então dessa produção poética a partir de Blumenau, mas com pontos de vista diferentes. Não tenho dúvidas de que ali o grande objetivo de Falações será alcançado. Ou o primeiro grande objetivo.

LANÇAMENTO(S)

A primeira aparição de Falações acontecerá durante o Primeiro Aniversário do Movimento 13 de Julho, evento organizado pelo SINSEPES, a partir das 16:00h no saguão do bloco A da FURB. Estarão presentes também os autores José Endoença Martins, Urda Kluger, Maicon Tenfen e Viegas Fernandes da Costa.

Já o lançamento oficial acontece no dia 22 de julho no Butiquin Wollstein, na rua Floriano Peixoto, 89, no centro de Blumenau. A partir das 19:30 acontecerá a cerimônia de lançamento, com os devidos agradecimentos às várias pessoas que auxiliaram, de alguma forma, na realização deste projeto.

Estão todos convidados, claro! Quem quiser saber do que se trata antes do lançamento do dia 22 pode adquirir seu exemplar comigo ou na 100% Vídeo de Blumenau, na esquina da 7 de Setembro com a Paulo Zimmermann. Logo o livro estará à venda pela internet e em demais regiões do país. Por enquanto, somente em Blumenau.

Até o lançamento, então. Grande abraço!


quarta-feira, 18 de junho de 2008

Livro de poemas? É fácil! (???)

Se me perguntarem, não saberei o que dizer. Longe da arrogância acadêmica — que sempre põe um nome em tudo — ou da inocência leiga, que ao contrário da outra chama tudo pelo mesmo nome, sinto que não consigo descrever este meu livro. Então penso: trata-se de um livro de poemas, é fácil. Mas do que são feitos estes poemas? Procuro no belíssimo texto da orelha, procuro no suntuoso posfácio e lamento: não sei.


Pois que poesia, aquela, onde terá ido parar? Fico muito feliz ao ler “De espantalhos...”, de Viegas Fernandes da Costa, lançado menos de um mês atrás, e encontrar ali o que eu procurava, seguro de que ainda se faz boa poesia. Da mesma forma como me sinto corajoso cada vez que abro “Pronomes de Caso Clínico”, de Mauro Galvão, para voltar a descobrir as linhas já gastas e encontrar, perdidas entre as letras, imagens ainda não desvendadas; folheei muitas vezes este livro.

Mas vamos ao ponto: Falações trata de quê? Ah, filhinho, tem de tudo ali: dor-de-cotovelo, ranço operário, psicanálise de botequim. Penso na decepção que terá o meu leitor que, procurando, não encontrará o que talvez quisesse ler. Afinal, trata-se de um livro de poesia, não é? E da poesia, que se espera?

Bom. Primeiramente, da poesia se espera que seja escrita por um poeta. De preferência, um tipo paspalho, feio, mas charmoso; perfumado e triste, com ar galanteador. O poeta, vamos analisar, não pode ser terreno. Não pode ser gente; gente que é, tem de parecer outra coisa. Um semideus das letras, por exemplo. Alguém que saiba lidar com a palavra, que durma com a palavra, acaricie a maldita da palavra enquanto sopra no ouvido da amante uns versos pré-fabricados.

E da poesia, acreditem, se espera que faça sentido. Que tenha começo, meio, fim; personagens, um narrador bondoso. Da poesia se espera que se torne prosa Sabrina de livro mofado no canto escuro do sebo. Que fale de amor, principalmente. Ou fale de coisas belas: paisagens bucólicas, finais felizes, céu azul de inverno e chocolate quente? Não sei. Que tipo de belo, o senhor pode me especificar?

Para se ler poesia, tem de ter livro nenhum ao alcance das mãos. Talvez assim dêem uma chance ao coitado. Ué, mas não é assim? Então que se leia o jornal diário, a revista da semana, o livro relançado ano a ano de que todo mundo fala e que virou filme. Sendo o último da estante, o mais barato no sebo, recomendado com insistência torna-se um livro lido.


Escrever versos passou a fazer sentido para mim depois de conhecer Manuel Bandeira. Mas o sentido estava no Bandeira fazer versos, não eu. Ali pude vislumbrar a felicidade do poeta (galanteador mesmo, poemas de amor mesmo) que punha em poucas linhas aquilo que lhe vinha à mente e que, ainda por cima, se podia chamar poesia. Depois de um tempo, Bandeira tornou-se estereótipo de movimento modernista, charminho de intelectual idoso querendo pegar moça bonita.

Então vieram os pós-modernistas, principalmente os mais de perto, que respiram o meu mesmo ar úmido. Ali vi que havia liberdade. Liberdade mesmo. Liberdade de rir da fábrica e dos operários da fábrica; liberdade de rir da mãe, do pai, da bursite, da Fluoxetina. E ri com eles. Muito depois deles, é verdade, mas o meu riso quase me afogou a mente. No entanto, ri sozinho. Já não era mais tempo de rir: chegara a hora da caridade.

Lia os irônicos e me decompunha. Estava ali com pessoas que pareciam arranjos de mesa de casamento, floridas e perfumadas, declamando entre si poemas que se tivessem sido lidos, antes, por uma criança jamais teriam sido dispostos ao público: a criança os censuraria. A essas entidades de amor mútuo, denominadas sociedades de escritores, cabe a censura de Mário de Andrade: “Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só”. Me zanguei: vou rir, nem que seja sozinho, mas vou rir o meu próprio riso e escrever o que eu quiser.

Então chegaram, consequentemente, o non-sense e o foda-se. Poesia é o seguinte: está ou não no poema. O poema pode ou não ter poesia. Poema com poesia é poema; poema sem poesia é exercício caligráfico. E lá fui me meter a escrever o que me vinha à mente. E escrevi. Compartilho que minha letra melhorou muito nos últimos anos. Mas chega um momento em que tem de se decidir: afinal, a coisa anda ou não anda?

Andou. Falações está no prelo, no último lance de escada, abrindo a porta da minha casa para dizer que chegou e eu não sei como recebê-lo. Filho? Amigo? Irmão? Prefiro estabelecer com ele relações trabalhistas: eu trabalho, tu usufruis disto. Porque dizer de um livro de poemas que tem de ser escrito por um poeta já decepciona, quando o vivente se pergunta “e poeta, o que é?”. E se for mais adiante, vai quebrar a cara ao se perguntar do que é feita a poesia.

Mas está chegando. Abrindo a minha e a tua porta, leitor. Se tiveres paciência para procurar ali nas entrelinhas um vácuo, talvez tu o encontres. É nesse vazio que está todo o sentido de escrever. Um vazio meu, por vezes compartilhado, que não me deixa viver em paz, que me faz perder o dia atrás de um registro, um cheiro, que seja um toque: algo que me permita borrar a folha branca e suspirar: “está feito”. Mas não todos os dias, que fique claro, que eu tenho mais o que fazer. Alguns dias, aqueles dias.

Clamo ao leitor que me responda: afinal, este livro trata de quê? E já adianto que é bem mais fácil falar dos livros dos outros do que do seu próprio. Talvez pela obviedade (afinal, eu o escrevi e, em algum momento, foi óbvio tê-lo escrito), talvez pelo espanto de encontrar ali mais do que se tivesse buscado. Mas te digo: é um assombro!

Logo entro em maiores detalhes.

sábado, 24 de maio de 2008

"As pedras também não são eternas"


Lançamento do primeiro livro de poemas de Viegas Fernandes da Costa não deixa dúvidas: ainda se faz boa literatura!


Quem já tinha lido Sob a Luz do Farol e sentiu-se satisfeito, ficará surpreso ao conhecer o primeiro livro de poemas do escritor Viegas Fernandes da Costa. Porque aquela prosa fragmentada de antes (não creio que conjunto de crônicas algum terá sentido maior do que a mão que as escreve) prepara o leitor para o que há de vir. E o que vem é este belo exemplar de “De espantalhos e pedras também se faz um poema”.

O poema, a meu ver, antes de tudo, é o próprio livro, o exemplar que se segura nas mãos. Impresso em linotipo, o volume, nas palavras do próprio Viegas, pretende afrontar o livros impressos na off-set, os livros “pós-industriais, pós-modernos, pós-livros”. Acontece que, conhecendo Viegas, pude logo ver que o que afrontaria seus leitores não seria o exemplar (o ferro, a tinta, a pressão sobre o papel). Quem afronta, realmente, é o poeta. Lá está.

“De espantalhos...” está dividido em três partes: O Livro das Pedras, Espantalhos no Deserto e Ecos de Mim. Lendo, relendo, passeando ou perdendo-se por estas páginas, surge a necessidade de revidar a insistência do autor em dizer que “não há uma unidade temática neste livro – não a procurem”; daí nós ignorarmos a recomendação e embarcarmos rumo à busca de uma unidade, uma significação para “De espantalhos...” que vá além da coletânea de poemas. Embarquemos!

O LIVRO DAS PEDRAS

Há em todo este livro uma grande necessidade de chocar, pôr o leitor contra a parede e exigir deste um ato, um gesto, uma resposta. Desde o primeiro grito, quando o poeta divide sua angústia com “AS PEDRAS TAMBÉM NÃO SÃO ETERNAS”, o leitor começa a envolver-se com um mundo que não é literário, imaginativo ou idealizado. É este nosso mundo que encontramos nos poemas de Viegas. E talvez seja por isso que não consigamos sair ilesos.

O Livro das Pedras é uma surpresa. Não somente pela unidade do tema (lá no título já nos é avisado, na verdade), mas por ser breve e direto, como em “A pedra no meio do rio, afronta / como pedra no meio do rio, / em silêncio, o tempo e as águas”. Novamente, o poeta é bondoso conosco, ingênuos leitores, e há novamente a preparação para o que há de vir. Coitados, o que seria de nós ao entrar despreparados em Espantalhos no Deserto.

ESPANTALHOS NO DESERTO

Rápido, é preciso ler rápido. Leitor, não brinque por estas páginas, senão a realidade acaba batendo à tua porta e tu te mijas todo! Já tinha lido assim em Murilo Mendes, talvez algo em Vinícius-poeta, e só não fiquei muito feliz por ter lido em Viegas poemas tão cruéis, porque a felicidade não pode acompanhar uma leitura de Instantâneos, Canto Guajira, 1964 ou Quem Plantou os ?Cem Plantou os ?C tVinnr a textura, o gosto das pedras; ouve-se aliCogumelos?. Não. O que se vê por aqui é justamente um contato com o mundo caduco, cruel, triste, revelado pela sensibilidade de quem consegue tornar em poema aquilo com o que sequer conseguimos manter contato.

Para não dizer que Espantalhos no Deserto é somente estupor, susto e azia, lemos ali o antológico Impressões do Vale. O poeta, desta vez, analisa a vida em uma cidade que poderia ser qualquer uma, desde que cortada por um rio qualquer, um “rio que zomba delas, / a veia de merda que vaza / do leito que não dorme. Conseguimos nos enxergar ali? Todo o tempo! Seja na figura da moça fiandeira, nas formigas que “todos os dias, em carreiras, enchem os ônibus”, naqueles que “invejam o ócio que reprimem com bocejos de cansaço”. Sim, podemos nos ver todo o tempo ali, todo o tempo, e não temos a menor vergonha por isso.

ECOS DE MIM

O que lemos em Ecos de Mim, capítulo que fecha o livro, é justamente a abertura. O poeta, de peito aberto, entrega-se em poemas intimistas. Adultos, infantis, o poemas de Ecos de Mim põem-nos a dois passos do Viegas que compõe versos, mas esse encontro, o toque, não é possível, já que o poeta ou esconde-se nas sombras (Nas dobras das sombras) ou esconde-se dentro de si mesmo (Ecos de mim).

O que fica? Esta terceira e última parte de “De espantalhos...” já não é tão dura. O mundo, agora, não é o nosso, é o mundo do poeta. Contemplamos e buscamos compreender, queremos ajudar, ouvir o que mais aflige o compositor. O último capítulo bem poderia ser o primeiro. É leve, mesmo que tenha a mesma força dos outros dois cadernos. Não dá pra saber, por aqui, se conseguimos alcançar o sentimento que teve o poeta ao compor estes poemas. Nunca saberemos, e talvez seja esta a pergunta que ecoe: “Poeta, e agora?”.

Muito boa a leitura de “De Espantalhos...”. Confesso a surpresa boa de quem não esperava o que ler e acabou encontrando o que somente talvez supusesse: um poeta que não escrevesse sobre seu umbigo, como se acostumaram a fazer tantos, e que levasse a sério o ofício da escrita. Talvez seja esta a grande unidade deste livro: a seriedade. Sério como poucos, poeta como poucos, Viegas Fernandes da Costa mostra-se uma Polaroid por demais ciente do que significa poetar.

E a quem ainda não chegou a dura voz da realidade, ela esta ali, nas páginas rudes de “De espantalhos e pedras também se faz um poema”. Ouse ouvir, leitor, que depois a gente conversa.

sábado, 26 de abril de 2008

Das comédias (e tragédias) de publicar um livro


Daquela velha história de que um homem precisa plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro, resolvi começar pelo fim. Pois que depois de algum tempo, de várias tentativas frustradas e desistências consecutivas, Falações, meu primeiro livro, será realmente publicado. É sobre isso — y otras cositas más — que falarei a seguir.


Sobre escrever o livro

Quando as pessoas que já sabem perguntam sobre o que será o livro — isso quando não emendam a pergunta com “sobre a história da tua vida?” — eu desconverso e explico: é um livro de poemas... de mau gosto. Claro que não. É um livro de poemas, ora! Mas quem sabe o que é isso, um livro de poemas? Então pra não falar de contemporaneidade, experimentalismo, psicanálise e tragicomédia, simplesmente digo que são poemas de mau gosto, mas mau gosto mesmo, onde se pode ler sobre incesto, estupro, falência múltipla dos órgãos. Pelamordedeus, que não quero afastar os leitores, mas levando em conta o tanto que se tem publicado e lido de material poético ginasiano (amor e dor, amor e flor), prefiro não decepcionar as pessoas.


Falações surgiu há uns três, quatro anos. Na época, pensava em inscrevê-lo como projeto do Fundo Municipal de Cultura de Blumenau. Passou o primeiro edital, passou o segundo e foi a vez de, no terceiro ano do Fundo, levar a sério o projeto do que viria a ser meu primeiro livro. É bem verdade que o conteúdo foi alterado, reformulado, reinventado com o passar do tempo. Hoje, parece estar tudo bem. Pelo menos, olhando-o chego a pensar que “taí, a hora era essa mesmo!”. E não se tem mais muito a dizer a respeito disso: é um livro de poemas e pronto. Poemas meus que dialogam com sabe-lá-o-quê, com narradores que captam vozes sabe-lá-de-quem ou de-onde. E poesia não é isso mesmo?

Montando o projeto

Pois que este é o terceiro ano do Fundo Municipal de Cultura de Blumenau. Eu, que jovem sou, descubro que é uma reivindicação de muitos e muitos anos da classe artística blumenauense. Dos iniciais 200, passou a 250 e chegou, em 2008, a trezentos mil reais, financiando projetos de onze áreas diferentes. Era de se saber, portanto, como escrever um projeto de literatura.

Numa iniciativa bela e econômica (bela pelo altruísmo, econômica por não ter de repetir dezenas de vezes as mesmas coisas), a Fundação Cultural de Blumenau ofereceu, durante cinco dias, oficinas para auxiliar na composição dos projetos. Casa cheia, por ali se encontravam produtores culturais, músicos, artistas plásticos e escritores. Por mais que rondasse o ar o espírito competitivo de cada um, podia-se perceber o propósito comum de aprender. Nas cinco noites, falou-se de contrapartida social, função social das artes e da cultura, de legislação, de prestação de contas. Enfim, praticamente tudo que se precisa, de forma geral, para concorrer a um edital público de financiamento cultural.

Tópicos anotados, surge a pergunta: e agora, o que eu faço com isso? Pois bem. Durante um mês, pelo menos, deu tempo de pensar em como o projeto poderia ser útil não só a mim, mas à sociedade. Foi dessa indagação que surgiram dois eventos-chave do Projeto Falações: uma oficina sobre poesia blumenauense, contando a sua história e investigando as suas teorias e uma mesa-redonda entre poetas que fizeram e ainda fazem a história dessa literatura. Uma boa oportunidade para dizer à academia e ao público leitor que sim, existe uma literatura oriunda de Blumenau que possui um valor teórico, que possui características populares, que o que se escreve está ligado, direta ou indiretamente à cultura da cidade, do estado, do país.

Esperando os resultados

O sofrimento começou quando um grande amigo, Pedro Dieter, que mora em Vitória-ES, com todo o carinho disponível decidiu montar a capa de Falações. Pedro acabava de chegar de Atlanta, nos Estados Unidos, com um monte de idéias novas para pôr em prática. Ótimas idéias mesmo! A melhor delas foi fazer a arte da capa utilizando a obra de um artista norte-americano que trabalha com grafite. Bom, muito bom mesmo, mas como contatar o artista?

Pedro escreveu a Justin Kauffman dizendo tratar-se eu de um amigo, jovem poeta etc. que queria publicar seu primeiro livro. Disse ter montado a capa utilizando um recorte da peça So What, que havia ficado tudo muito bonito, muito charmoso, se ele autorizava, essas coisas. Justin, muito atencioso, disse que sim, claro, como não (tudo isso em inglês) e autorizou a utilização da obra. Acontece que, ao participar de um edital, não interessa quem disse ou quem deixou de dizer: são necessários documentos comprobatórios. E é aí que entra o sofrimento.

Faltando duas semanas para protocolar o projeto, entrei em contato com Justin, explicando que precisava de um documento passado em cartório. Da mesma forma, Pedro ficara de enviar a sua própria autorização, afinal a arte gráfica era dele. No fim, quase morrendo de ansiedade, recebi as duas cartas juntas no penúltimo dia de prazo. Só não entendi como uma carta de Vitória, ali no Espírito Santo, pode demorar tanto quanto uma carta enviada de um país estrangeiro tão longe. Mas enfim.

Imaginar que seu primeiro livro pode ser publicado não é fácil. Moacyr Scliar, no texto “21 coisas que aprendi como escritor”, diz que frio na barriga e pêlos do braço arrepiando são sinais de quem um livro está pra chegar. Mas, e se não fosse? E se todo o trabalho, todos os contatos e todos os votos de confiança tivessem sido em vão? E as noites sem dormir, pensando em algo que tivesse ficado pra trás? Os sintomas eu já tinha — e já tinha também a fé dos perdidos, do tipo “claro que vai, não tem como não, a gente se vê no lançamento”. Poderia ser tudo mentira. Mas não foi.

Então, até o lançamento

Se fosse assim tão simples, o texto terminava aqui. Acontece que mesmo tendo mostrado o livro a editores, não era certo que o livro seria aceito por alguma séria. E o que eu faria com centenas de exemplares em casa? A idéia era justamente encontrar uma rede de distribuição (que em Santa Catarina não há) que levasse Falações para outras regiões. Que as pessoas que quisessem lê-lo no Rio Grande do Sul, no Paraná, em São Paulo, no Rio pudessem encontrá-lo, verificá-lo, lê-lo e até mesmo comprá-lo.

A resposta da editora, exatamente a que eu esperava, chegou outro dia. Fiquei feliz, claro. Era o último degrau de uma escada que eu havia começado a subir ainda no ano passado. Se eu liguei pra quem podia? Claro. Se eu escrevi para quem devia saber? Óbvio. Mas o resultado de tanta euforia foi mesmo um dia de cama, triste, amuado, choroso. O que havia de errado?

É estranho. De repente, quando vi, estava escrevendo mais do que devia, lendo sempre o mesmo tanto (minha mãe ainda diz que ler demais enlouquece as pessoas), estudando o quanto podia. Mas a poesia, em que canto deixei? Sinceramente, depois de ter entregado o projeto, de ele ter sido aprovado e da editora ter aceitado publicá-lo, o que eu mais queria era vê-lo longe o mais possível. Parecia que, ganho o jogo, não era mais hora de me preocupar com isso ou aquilo, mas a preocupação veio mesmo assim: e agora, o que as pessoas vão pensar?

Dizer que se trata de um livro de poemas de mau gosto coube em certo momento — e ainda cabe, porque repito todos os dias a ladainha — mas agora o meu teto será de vidro. Aquele cara que diz “olha, poesia é uma coisa bacana e isso aqui é exatamente o contrário” agora vai expor a cara à tapa. Mas faz parte do processo e, de qualquer forma, uma vez lido o livro deixará de ser meu, escrito por mim, viabilizado etc. Acontecerá, então, de eu encontrar um exemplar de Falações na estante e querer lê-lo como se estivesse lendo um outro livro de poemas de um outro autor. E quem sabe eu goste!

Quem sabe vocês gostem! Portanto, até o lançamento!

quarta-feira, 19 de março de 2008

"Quem nasce no Brasil ou é brasileiro, ou é traidor"



Calma, leitor. Antes de pensar que esta se trata de uma frase tirada de um panfleto, preste atenção: ela foi dita por Lauro Muller, catarinense, engenheiro militar e político que morreu em 1926, no Rio de Janeiro. E por que esta frase está aqui? Vem acontecendo, desde novembro de 2007 (vem acontecendo porque é em fases) o I Seminário de Língua Alemã de Blumenau. O projeto deste evento foi encaminhado ao Ministério da Cultura e acontece, hoje, graças ao Petrobrás Cultural.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Há que ficar claro aos leitores que a questão da língua alemã no sul do Brasil não é somente séria, merecedora de revisões, como também mal estudada. Na verdade, os estudos parecem ter recém começado, mas de qualquer forma faltam aprofundamentos. Pensando nisso, talvez, que o Seminário de Língua Alemã veio ao mundo.

Pra quem não sabe, boa parte da região sul foi colonizada por imigrantes europeus. Oriundos de algumas grandes frentes regionais (Alemanha, Polônia, Itália, Ucrânia), esses imigrantes não somente deixaram seus países de origem como almejavam levá-los consigo para o Novo Mundo. Foi o que aconteceu na região de Blumenau. Os migrantes que por aqui chegaram depois da metade do século XIX não somente possuíam nacionalidade alemã, como tentaram manter o espírito alemão, o deutschtum, que numa tradução imprecisa significa germanidade.

Mas vivendo num país estranho, falando uma língua estranha, ainda que em comunidade, pode se imaginar o conflito vivido por estes novos moradores da América. De um lado, traziam a esperança de, finalmente, possuírem terras, bens econômicos, liberdades política e social (que na Alemanha andavam escassas) e poderem oferecer vidas melhores a si e aos seus filhos. Por outro, ficava a saudade de uma Alemanha civilizada, de literatura desenvolvida, de pessoas que entendessem o idioma que falavam, enfim, irmãos de sangue e pátria.

O PIONEIRISMO DE VALBURGA HUBER

A respeito desse tema, do dualismo constante vivido pelos imigrantes alemães que chegaram ao sul do Brasil, ninguém pode ser melhor referência do que Valburga Huber. Doutora em Língua e Literatura Alemã pela USP, foi a primeira pesquisadora a abordar o tema da literatura teuto-brasileira (teuto, que vem de teutônico, que abrange os demais povos de língua germânica que migraram para o Brasil na época). A dissertação de mestrado que virou livro, Saudade e Esperança – O dualismo do imigrante refletido em sua literatura, é o ponto de partida de uma série de novos olhares para essa realidade do imigrante alemão em terras brasileiras.

Em Blumenau, o idioma alemão foi oficial por quase cem anos. De 1850 a 1940, o alemão era oficial tanto na mídia impressa como nas escolas e na literatura dos blumenauenses. Poetas e escritores emigrados não fizeram somente muito sucesso entre as colônias alemãs brasileiras — mesmo porque a literatura que produziam estava diretamente ligada aos fatos da imigração — como muitos chegaram a fazer sucesso na própria Alemanha do início do século XX. A esse respeito, nada melhor do que ler e se deixar apaixonar pelas obras de Valburga Huber e Marcelo Steil, este que escreve nos anos de 1990 sobre a poesia imigrante, procurar entender do que na verdade se tratava esta produção literária que era tanto alemã quanto brasileira. Se não no idioma, mas certamente no espírito.

Com as Campanhas de Nacionalização do Ensino, impostas por Getúlio Vargas, não somente se perdeu o contato com esse idioma escrito, como aos poucos ele foi sendo deixado de lado até ser quase totalmente esquecido. Pois bem. Nos anos de 1940, institui-se que o idioma oficial de Blumenau é o português. E daí? Proibiram-se os jornais, fecharam as escolas e por um bom tempo se deixou de escrever literatura.

O BILINGÜISMO PESQUISADO POR MARISTELA FRITZEN

O leitor que veio até aqui pode imaginar o trauma causado pelas decisões meramente políticas, burramente políticas, que silenciaram não somente um povo, como também emudeceram uma cultura. Da década de 1940 até as décadas de 1960/70 temos o período que chamamos “silenciamento lingüístico”. Ou seja: por vinte, trinta anos, não se falou. Ou melhor: os então descendentes de alemães que por aqui viviam tiveram de reaprender a se expressar, dominar uma nova língua, novos costumes lingüísticos; tiveram de se tornar brasileiros.

Ou não. E quem oferece a negação é outra pesquisadora que merece aplausos. Maristela Fritzen apresentou durante o Seminário de Língua Alemã partes interessantes de sua tese de doutorado. Denominada “Ich kann mein Name mit letra junta und letra separada schreiben” (Eu consigo escrever meu nome com letra junta e com letra separada), o trabalho de pesquisa de Maristela descreve as experiência de bi e multilingüismo em escolas da região de Blumenau. O que fica claro é que mesmo o silenciamento provocado pelo Estado Novo conseguiu apagar os traços mais importantes da cultura alemã no sul do Brasil: seu idioma e as pessoas que o falam.

Se no século XIX tínhamos alemães que deixaram a Alemanha em busca de uma Terra Prometida, por assim dizer, no século XXI temos uma comunidade extensa que procura ser respeitada pelo idioma que ainda fala. É verdade que o alemão de Blumenau não é o mesmo da Alemanha, mas como frisa Maristela, “o português do Brasil é o mesmo de Portugal?”. A língua é viva, pois não.

Acontece que falar o “alemão de Blumenau” não é uma questão de prestígio. Isso, Maristela explica muito bem, colocando como línguas prestigiadas o inglês, o francês, o espanhol e até mesmo o alemão gramatical, aquele estudado em escolas alemãs. O dialeto que surgiu no Vale do Itajaí, este sofre com o processo de estigmatização da língua por não ter prestígio, por estar limitado a um grupo relativamente pequeno de falantes.

VOLTANDO AO SEMINÁRIO

É preciso voltar ao I Seminário de Língua Alemã de Blumenau para terminar este meu texto. É preciso dizer que este evento tem uma importância desigual para a compreensão histórica e social do que aconteceu no Sul do Brasil nos últimos cento e cinqüenta anos. É preciso parabenizar seus organizadores por terem reunido, numa mesma fala, três dos maiores pesquisadores da língua e da literatura alemã no estado de Santa Catarina.
Mas é preciso retomar um pouco da fala de Valburga Huber. Quando lhe foi perguntado se o uso do idioma alemão na literatura (sobretudo na poesia) era uma questão de mera sensibilidade ou uma prática política desses mesmos imigrantes alemães para que não perdessem o vínculo com o país de origem, a pesquisadora busca nos poetas de língua alemã lá do século XIX uma resposta precisa: ainda que escrevessem em alemão, eles já saudavam a nova pátria, o Brasil, suas riquezas naturais etc. como pertencentes a esta terra, como seus novos moradores.

E é aqui, finalmente, que se encaixa a frase-título desse texto. Ela foi dita por um desses descendentes de alemães que lutaram pelo país para o qual migraram, o Brasil. Os imigrantes vieram da Alemanha, é verdade. Mas quem sofreu com as diretrizes políticas do Estado Novo foram os seus filhos. Se queriam, por um lado, manter contatos anímicos com o país de origem, em momento proibiram que seus filhos se tornassem “brasileiros”. Pretenderam, na verdade, manter viva a cultura, mantendo-a acesa — o que não é problema nenhum se virmos as oktoberfests que acontecem em todo o sul do país, os “vales europeus”, os grupos de danças típicas alemãs. A verdade é que o Brasil foi o país que acolheu estes imigrantes quando seus países lhes davam as costas; de alguma forma, lhes eram agradecidos.

Aos poucos, a língua alemã volta a ser pauta de discussão nos meios educacionais e políticos de Blumenau. Felizmente. Não que ainda dê para recuperar o tempo perdido durante as campanhas de nacionalização, a Segunda Guerra Mundial, a repressão com que sofreram estas milhares e milhares de pessoas. O tempo passou e as marcas estão aí. Mas que seria realmente muito bom se se reconhecesse a brutalidade que aconteceu contra brasileiros, em território brasileiro, que somente não tinham o português como língua padrão, ah, isso seria realmente muito bom. Seria, principalmente, o primeiro salto contra o preconceito lingüístico: aquele que diz que quem não fala o bom e velho (velho mesmo) português gramatical deve ser varrido das faces deste país.


A respeito deste tema, já escrevi no artigo Nacionalismo: marcas de um silêncio que persiste,
publicado originalmente no Overmundo, em 2007. Como se pode ver aqui, trata-se ao mesmo tempo de uma afirmação daquele, contendo a sua negação.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Apontamentos para uma entrevista com Werner Neuert




Escritor de Indaial mostra-se grande expoente da literatura contemporânea, ainda que sua obra não tenha sido realmente descoberta
.


A respeito de Werner Neuert, sei tanto quanto qualquer leitor que tenha tido contato com suas obras e tenha lido, nas orelhas destas, informações triviais como idade e profissão. Conheci sua escrita chocante no site do escritor Viegas Fernandes da Costa. Na ocasião, lendo o que Werner escreveu, lembro de ter sentido um misto de intensa excitação e vaga raiva. Não entendia nem um nem outro sentimento. Entendo agora. E se faço aqui apontamentos para uma possível entrevista, é porque sinto necessidade de conversar com Werner, saber quem é esse escritor, no mínimo, revoltante.

De início, é preciso dizer: Werner é um grande sedutor. Não somente seduz com sua linguagem sem rodeios, muitas vezes urbanóide, rápida e direta como também suas personagens têm sempre atos, olhares, pensamentos sedutores. E não se trata da sedução romântica a que estão acostumados os nostálgicos e aquietados. Pelo contrário: o que há de sedutor em Werner é justamente a sua contemporaneidade e a de suas criações, pessoas assustadoramente mais próximas de nós do que poderíamos supor.

Logo, lendo, deixando-se seduzir, vem a raiva, a revolta. Sim, por dois motivos: a) a genialidade de um escritor praticamente desconhecido de grande parte do público leitor que se (auto) denomina crítico e b) por escrever sem rodeios sobre tantos tabus quantos podemos imaginar que existam — claro, sempre descobrimos mais um — e fazê-lo de forma natural, clara, objetiva, ilustrando aquilo que está ali, muitas vezes na nossa frente, e não enxergamos porque somos cristãos, ou ateus, ou direitistas, ou esquerdistas, ou existencialistas, ou o quê. Mas Werner nos ensina, à força, que sempre haverá dentro de nós alguma excentricidade que não poderemos revelar a ninguém. E, quem sabe, nem a nós mesmos.

Conheço dois de seus livros. Creio que sejam os únicos dois. O primeiro, em ordem cronológica, é Do Ofício de Matar Bois. Deveria ser um livro de contos. E o que se espera de um conto? Oras, que tenha começo, meio, fim; moral da história? Nos contos de uma, duas páginas, nos deparamos com o improvável: incesto, adultério, loucura, bolinagem, patricídio (acreditam que essa palavra não existe?), suicídio, enfrentamento e pessimismo em relação ao passado. Conforme escreveu a respeito deste livro a escritora Urda Alice Klueger, o escritor “nos joga problemas e mais problemas nas mãos e, rapidamente, sai de cena, sem nos deixar fugir das realidades que deixou no palco”.

É fato: embora um ou outro escritor, nos dias de hoje, ainda consiga chocar seu leitor com palavras, muitas vezes resta uma sensação de que, na contemporaneidade, tudo já foi escrito. Talvez o que mude seja a forma de dizer. Por que não? Mas Werner não somente tem a sua própria forma de escrever — veloz, como um fugitivo; cortante, como uma faca de açougueiro — como consegue, de seu modo, reunir num livro de 70 páginas tantas aberrações sociais que não seria raro o leitor sentir um intenso mal-estar após sua leitura.

Mas de onde viria esse mal-estar? Seria, por exemplo, do contato que muitos seres humanos têm, pela primeira vez, com verdades também humanas que se escondem sob as peles de homens sociais, homens de família, homens de religião? Não seria porque, pela primeira vez, o leitor tem acesso a sentimentos escritos que talvez tenha sentido ele mesmo repetidas vezes e por saber do absurdo reprimiu-os sob sentimentos mais comuns na sociedade em que vive? São perguntas a se fazer a Werner.

Seu segundo livro em ordem cronológica, A Terra Estava Vazia e Vaga, pode ferir muito mais do que Do Ofício... Desta vez, temos uma edição dividida em duas partes principais, Histórias e Longas Histórias. Em Histórias, o que temos é uma excelente coleção de bizarrices. Na verdade, uma compilação de humanidades: falas cotidianas, coloquiais, que ouvimos, dia após dia, e às quais não damos muita atenção. Mas, tenho certeza, e o leitor também terá, de que muitas dessas falas, se não as dizemos da boca para fora, certamente as dizemos para nós mesmos, numa intimidade difícil de se chegar com a luz acesa.

Essa primeira parte da obra contém contos minúsculos, micro-contos de uma, três, cinco linhas. Ali, lemos sobre a Morte, sobre o Amor, sobre o Único Deus, o Cosmos Uno, sobre a Divina e Suprema Realidade. É, na minha opinião, o melhor dos dois. Não somente porque reúne muitas e muitas histórias breves e chocantes, como também fere mais a fundo por assumir a voz de seus falantes. Supondo, claro, que Werner escreva muito do que ouve. Perguntaria a ele: afinal, quanto daquilo é real e quanto é imaginário? Sendo a resposta "real", perguntaria: que tipo de naturalismo é esse? Ser realista, tudo bem, mas anti-ético? Anti-homem?

É óbvio que as perguntas seriam outras. O que Werner faz é radiografar - e aqui falo como sendo um leitor de Blumenau que descobriu um autor de uma cidade menor ainda, Indaial - uma sociedade silenciosa porque silenciada e nos mostrar somente as chapas. Mesmo porque nós fazemos parte dessa sociedade radiografada. E se nos assustamos, é porque vemos ali, claramente, contra a tela clara, os nossos próprios tumores.

Certamente que faria muitas perguntas a Werner. Farei, se possível, porque anseio por isso. Do que sinto falta, na verdade, é que já não tenha lido as respostas desse fantástico autor respondidas a outrem. Por acaso, nunca ninguém quis perguntar a Werner, em nome de um público leitor, a respeito de seus fazeres literários? Por que não? Por acaso, conhecem esse autor inovador que - besteira isso, de comparar - iguala-se a Dalton Trevisan, inovando-o; ri e chora com Sartre, Camus, Nizan, estes autores supervalorizados; mostra-nos, muitas vezes, o que (não quem) realmente somos e nos faz rir nervosos por ter descoberto, ter nos feito descobrir verdades simplesmente mentirosas sobre as pessoas que somos?

O dia em que a obra de Werner ultrapassar as barreiras coloniais do Vale do Itajaí e de Santa Catarina, tornará sua obra, como muitos gostam de dizer, cult. E então sua obra terá uma utilidade desigual, superior à dos livros de auto-ajuda, na descoberta, na aceitação e no entendimento daquilo que julgamos ser. E seu nome aparecerá em compêndios de literatura contemporânea como sendo o radiologista de uma sociedade doente e ciente disso, mas ignorante em relação a. E leitores e leitoras rirão da ironia destes escritos, mas no fundo sentirão alguma dor estranha, uma voz crescente que, quando for finalmente ouvida, lhes dirá, partindo deles mesmos: "Meu Deus, mas somos isto?"

Quem quiser saber um pouco mais sobre o autor, antes que eu o entreviste e procure decifrar um pouco desse escritor ímpar ímpar em terras sulistas, que leia algum dos seus livros e se deixe chocar com a sua crueldade, com a agilidade que este tem de segurar a marreta que, rapidamente, faz um boi enorme cair desconsolado. Que este novo leitor de Werner Neuert se deixe levar pelo sarcasmo e, quem sabe, comece ele mesmo a escrever na agenda, na caderneta, na lista de compras, bizarrices que ouve por aí, que pensa ele próprio, para entender que entre o real e a ficção há muito mais ligações possíveis do que as que academicamente julgamos possíveis.

Os livros de Werner Neuert são: Do Ofício de Matar Bois, publicado pela Editora Garapuvu e A Terra Estava Vazia e Vaga, da blumenauense Hemisfério Sul. Ambos fáceis de se encontrar em Blumenau, em livrarias e sebos. Portanto...

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A impressionante fala de Lauro Junkes sobre Um Cadáver na Banheira, de Maicon Tenfen


Quem, então, visita esse blog normalmente deverá se perguntar: mas será que não existe assunto para além de Maicon Tenfen? De fato, há. Não muito assunto, é verdade, porque basta que olhemos o jornal diário para perceber que muito se fala sobre pouca coisa, numa tentativa de, na televisão, preencher um horário, e no jornal, um número de páginas preestabelecidas que precisam ser entregues todos os dias.

Antes de chegar onde pretendo, preciso dizer: há assuntos. Um deles, que precisarei abordar por aqui, refere-se à Revolta da Esferográfica, que agitou três ou quatro bairros de Blumenau. Por ocasião de leitura de uma entrevista publicada neste blog, membros da Sociedade Escritores de Blumenau – SEB e outras pessoas, ditas normais, iniciaram um debate por email que durou ali umas duas ou três semanas. Muito se escreveu, muito se disse e parece que com o advento do verão – e das férias – os membros ofendidos da dita sociedade resolveram respirar outros ares; quem sabe, os do litoral. Mas disso falaremos em momento mais oportuno, porque acabou de chover, o clima é bom e a casa tem um cheiro gostoso. Noutra hora, falamos nisso. Agora não.

Outra novidade ou assunto refere-se à criação de um zine, chamado, por enquanto, de OZINE!, que deverá ser lançado em Blumenau durante os meses de fevereiro e março e que abordará, em sua primeira edição, o tema literatura, concentrando-se no Vale do Itajaí. Será uma ótima ocasião para remeter ao escritor Werner Neuert, por exemplo, o respeito que merece como brilhante e engenhoso contista, disfarçado de exímio homem contemporâneo.

Então, finalmente, ligando respeito e reconhecimento, colocamos aqui, à disposição dos leitores, um excelente texto escrito pelo crítico Lauro Junkes e publicado no Diário Catarinense no dia 29 de dezembro de 2007. Intitulado Folhetim Mirabolante, o texto de Junkes explora o já mencionado aqui Um Cadáver na Banheira, em sua terceira edição, do escritor Maicon Tenfen. No entanto, diferentemente do que se costuma ler a respeito de publicações, livros, autores etc. nos quase inexistentes espaços disponíveis em espaços midiáticos da região, a fala de Junkes é séria, comprometida e inteligente.

O respeito que devemos a Maicon — e aqui a resposta à pergunta lá de cima — tem vários motivos. O primeiro, por escrever bem. Depois, além de escrever, este autor conhece literatura e dá mostras disso. Um outro grande motivo é que este autor, que já tem sete livros publicados — e quantos no prelo? — é um autor jovem, na casa dos trinta, e que certamente continuará escrevendo e publicando e, como costumo dizer, dando rasteiras em seus leitores que ousam imaginar os descaminhos de seus escritos. E, para finalizar, Tenfen escreve a sério. E quem se dispuser a responder a estas perguntas, coladas aqui do texto que segue, escrito por Junkes (Um Cadáver na Banheira é narrativa policial? É picaresca? É pura ironia e humor? É dramalhão mexicano? É sátira a Paulo Coelho? Ou se trata de irônico retrato da realidade do escritor? A narrativa de Tenfen nos faz refletir: o que torna um livro literário? Quais as razões por que um livro se transforma em sucesso de vendagem?) perceberá de imediato: Maicon Tenfen não está de brincadeira.

A seguir, o texto de Junkes na íntegra, para que se possa ver que, de uma vez por todas, a academia pode sim prestar atenção à criação literária catarinense.


Folhetim mirabolante
O que faz um livro ser sucesso de vendagens é apenas um dos motes de Um Cadáver na Banheira, de Maicon Tenfen


Já em terceira edição, comprovando trajetória pouco habitual entre nós, Maicon Tenfen desmistifica, com Um Cadáver na Banheira (Blumenau: La Ventana, 2007), qualquer exigência de ponderação ou temática transcendente e profunda para que a obra literária mereça status elevado. Conscientemente apontado no esclarecimento ao título - Folhetim contemporâneo - , o caráter folhetinesco marca o tom da narrativa: a predominância absoluta de ação externa, em sucessão que exige fôlego resistente, o esfriamento quase total na expressão dos sentimentos, a intriga rocambolesca, o objetivo de prender e divertir o leitor e um evidente toque social de ironia e crítica.

Após um prólogo, literalmente in medias res, com o realismo e o humor da cena do cadáver na banheira, o relato compreende quatro partes. Teia de encrencas acontece em Blumenau/Vila Nova, com os protagonistas Jorge Gustavo de Andrade e Geraldine ("minha guria") refugiados em pensão, "quartinho do crime". Jorge, protagonista e narrador, tem por objetivo explodir como escritor, reescrevendo nada menos do que O Retorno do Alquimista. Aos poucos vão-se incorporando outras personagens decisivas: o cara do Passat, o travesti Bebé, acompanhados de ameaças e confusões, e ainda o Calinho de Witmarsum. Detalhes realistas ressaltam a significação dos obstáculos que se avolumam, a preocupação com a grana escondida, a desqualificada fauna humana dos moradores da pensão, o seqüestro. Os sonhos e pesadelos de Jorge se revestem de tonalidades melodramático-psicanalíticas.

A segunda parte, de forma analéptica, retorna a Os Acontecimentos de Witmarsum, que antecedem e desencadeiam a situação da parte anterior. Delineando traços picarescos que compõem o seu caráter, Jorge retorna ao momento em que, aos 31 anos de idade, é expulso de casa pelo pai, por não querer se "aviltar como trabalhador assalariado", decidindo "realizar o sonho infantil: seria escritor, mas um escritor milionário". Lances mirabolantes acompanham todo o seu trajeto, de Rio do Sul a Ibirama e a Witmarsum, onde é admitido como professor e se hospeda na casa de seu Lourival, pai das meninas gêmeas Geraldine e Jaqueane. Dormir é que se torna problemático, devido à "ninfeta despudorada". Envolvido pelas filhas do Lourival, e porque este "banhava-se em dinheiro", vislumbra maneira de realizar seu sonho de tornar-se escritor. O picaresco plenifica o folhetim.

A terceira parte - O Seqüestro - retoma o final da primeira parte, já com o cadáver na banheira. E "minha guria" exacerba sua confusão ao declarar: "Eu não sou a Geraldine", cientificando-se ele que as duas gêmeas haviam trocado de identidade. Mas o pai da mesma está ali, à porta da pensão, para exigir satisfações de tudo que acontecera. Agora Geraldine/Jaqueane, que está grávida, é seqüestrada. Sucedem-se cenas de suspense, até mesmo desaparecendo o cadáver da banheira. A decisão de Jorge, porém, não se curva: "Nem a polícia me impediria de publicar meu livro, de recuperar minha mulher e assistir ao nascimento do meu filho". No cerco dos policiais, sente "confirmado: meu passe de viagem não tinha validade para retorno". Toma todas as providências para publicar o livro e para salvar "minha guria", ponderando o perspicaz personagem-narrador: "Bonnye e Clyde? Lampião e Maria Bonita? Não, Jorge e Jaqueane, os foragidos do Verde Vale". À pergunta desta: "Você ainda me ama, Jorge? Ainda ama nosso filho?" (após ela ter sofrido o ataque do tarado do passat), até o pícaro amolece: "Com essa também chorei. Mas dei um jeito de chorar escondido".

Finalmente na quarta parte, A Grande Noite, acontece a apoteose do "escritor", com o lançamento do seu livro, que faz entrar em cena o escritor José Endoença, e explicita a agudeza crítica (lembre-se Paulo Coelho): "Marketing, apenas marketing. O que vende não é qualidade, nunca foi. E quanto mais grotesca e apelativa, melhor". Segue-se, ainda, um "pós-lúdio", que concretiza mais acirradamente a intenção crítica do autor.

A técnica de relato em retrospectiva é lucidamente assumida já nas palavras iniciais: "Algumas semanas antes do momento crítico, começamos a morar no quartinho do crime". Versatilidade e fluência do narrador merecem destaque especial. Definir-se-á no relato algum momento "sério", alguma atitude ou retrato de ponderação? O leitor implícito criado pela narrativa não condiz com pessoa "séria", com leitor que exija tratamento de grandes e respeitáveis temas, com ações edificantes. Quem não estiver disposto a suspender toda a ferrenha racionalidade lógica, que tanto nos domina, não abra o livro. Ou o leitor se deixará guiar pela descontração da ironia, ou deixará a leitura de lado. Irresistível se impõe o fluxo ininterrupto da ação, dos acontecimentos, sucedendo-se suspenses, instigantes impulsos, que impedem interrupção de leitura.

Não obstante todo o caráter folhetinesco, picaresco, irreverente e irônico, impõem-se algumas imagens de bela criatividade. Na decisão inabalável de proteger e salvar a criança, quando "minha guria" estava grávida, toda a truculência violenta se contém: "Acontecesse o que acontecesse, eu ainda a teria em meus braços, provaria o açúcar de seu sorriso e de sua alegria..." Quando sente os policiais fechando o cerco, pondera: "O diabo soprava as faíscas do pavio, queria que o foguinho chegasse logo ao barril de pólvora". Mas o narrador irreverente não perde o estilo, mesmo em meio às enrascadas: "Um silêncio atroz me abateu por segundos, a perna curta da mentira chutava minha bunda". No entanto, após ter recuperado Jaqueline, o pícaro se emociona: "Também matei a saudade de Jaqueane (começava a me acostumar com o novo nome), bombardeando seu preciso ventre com uma inesgotável artilharia de carinhos".

Um Cadáver na Banheira é narrativa policial? É picaresca? É pura ironia e humor? É dramalhão mexicano? É sátira a Paulo Coelho? Ou se trata de irônico retrato da realidade do escritor? A narrativa de Tenfen nos faz refletir: o que torna um livro literário? Quais as razões por que um livro se transforma em sucesso de vendagem?

LAURO JUNKES Presidente da Academia Catarinense de Letras