Antes de chegar onde pretendo, preciso dizer: há assuntos. Um deles, que precisarei abordar por aqui, refere-se à Revolta da Esferográfica, que agitou três ou quatro bairros de Blumenau. Por ocasião de leitura de uma entrevista publicada neste blog, membros da Sociedade Escritores de Blumenau – SEB e outras pessoas, ditas normais, iniciaram um debate por email que durou ali umas duas ou três semanas. Muito se escreveu, muito se disse e parece que com o advento do verão – e das férias – os membros ofendidos da dita sociedade resolveram respirar outros ares; quem sabe, os do litoral. Mas disso falaremos em momento mais oportuno, porque acabou de chover, o clima é bom e a casa tem um cheiro gostoso. Noutra hora, falamos nisso. Agora não.
Outra novidade ou assunto refere-se à criação de um zine, chamado, por enquanto, de OZINE!, que deverá ser lançado em Blumenau durante os meses de fevereiro e março e que abordará, em sua primeira edição, o tema literatura, concentrando-se no Vale do Itajaí. Será uma ótima ocasião para remeter ao escritor Werner Neuert, por exemplo, o respeito que merece como brilhante e engenhoso contista, disfarçado de exímio homem contemporâneo.
Então, finalmente, ligando respeito e reconhecimento, colocamos aqui, à disposição dos leitores, um excelente texto escrito pelo crítico Lauro Junkes e publicado no Diário Catarinense no dia 29 de dezembro de 2007. Intitulado Folhetim Mirabolante, o texto de Junkes explora o já mencionado aqui Um Cadáver na Banheira, em sua terceira edição, do escritor Maicon Tenfen. No entanto, diferentemente do que se costuma ler a respeito de publicações, livros, autores etc. nos quase inexistentes espaços disponíveis em espaços midiáticos da região, a fala de Junkes é séria, comprometida e inteligente.
O respeito que devemos a Maicon — e aqui a resposta à pergunta lá de cima — tem vários motivos. O primeiro, por escrever bem. Depois, além de escrever, este autor conhece literatura e dá mostras disso. Um outro grande motivo é que este autor, que já tem sete livros publicados — e quantos no prelo? — é um autor jovem, na casa dos trinta, e que certamente continuará escrevendo e publicando e, como costumo dizer, dando rasteiras em seus leitores que ousam imaginar os descaminhos de seus escritos. E, para finalizar, Tenfen escreve a sério. E quem se dispuser a responder a estas perguntas, coladas aqui do texto que segue, escrito por Junkes (Um Cadáver na Banheira é narrativa policial? É picaresca? É pura ironia e humor? É dramalhão mexicano? É sátira a Paulo Coelho? Ou se trata de irônico retrato da realidade do escritor? A narrativa de Tenfen nos faz refletir: o que torna um livro literário? Quais as razões por que um livro se transforma em sucesso de vendagem?) perceberá de imediato: Maicon Tenfen não está de brincadeira.
A seguir, o texto de Junkes na íntegra, para que se possa ver que, de uma vez por todas, a academia pode sim prestar atenção à criação literária catarinense.
Folhetim mirabolante
O que faz um livro ser sucesso de vendagens é apenas um dos motes de Um Cadáver na Banheira, de Maicon Tenfen
Já em terceira edição, comprovando trajetória pouco habitual entre nós, Maicon Tenfen desmistifica, com Um Cadáver na Banheira (Blumenau: La Ventana, 2007), qualquer exigência de ponderação ou temática transcendente e profunda para que a obra literária mereça status elevado. Conscientemente apontado no esclarecimento ao título - Folhetim contemporâneo - , o caráter folhetinesco marca o tom da narrativa: a predominância absoluta de ação externa, em sucessão que exige fôlego resistente, o esfriamento quase total na expressão dos sentimentos, a intriga rocambolesca, o objetivo de prender e divertir o leitor e um evidente toque social de ironia e crítica.
Após um prólogo, literalmente in medias res, com o realismo e o humor da cena do cadáver na banheira, o relato compreende quatro partes. Teia de encrencas acontece em Blumenau/Vila Nova, com os protagonistas Jorge Gustavo de Andrade e Geraldine ("minha guria") refugiados em pensão, "quartinho do crime". Jorge, protagonista e narrador, tem por objetivo explodir como escritor, reescrevendo nada menos do que O Retorno do Alquimista. Aos poucos vão-se incorporando outras personagens decisivas: o cara do Passat, o travesti Bebé, acompanhados de ameaças e confusões, e ainda o Calinho de Witmarsum. Detalhes realistas ressaltam a significação dos obstáculos que se avolumam, a preocupação com a grana escondida, a desqualificada fauna humana dos moradores da pensão, o seqüestro. Os sonhos e pesadelos de Jorge se revestem de tonalidades melodramático-psicanalíticas.
A segunda parte, de forma analéptica, retorna a Os Acontecimentos de Witmarsum, que antecedem e desencadeiam a situação da parte anterior. Delineando traços picarescos que compõem o seu caráter, Jorge retorna ao momento em que, aos 31 anos de idade, é expulso de casa pelo pai, por não querer se "aviltar como trabalhador assalariado", decidindo "realizar o sonho infantil: seria escritor, mas um escritor milionário". Lances mirabolantes acompanham todo o seu trajeto, de Rio do Sul a Ibirama e a Witmarsum, onde é admitido como professor e se hospeda na casa de seu Lourival, pai das meninas gêmeas Geraldine e Jaqueane. Dormir é que se torna problemático, devido à "ninfeta despudorada". Envolvido pelas filhas do Lourival, e porque este "banhava-se em dinheiro", vislumbra maneira de realizar seu sonho de tornar-se escritor. O picaresco plenifica o folhetim.
A terceira parte - O Seqüestro - retoma o final da primeira parte, já com o cadáver na banheira. E "minha guria" exacerba sua confusão ao declarar: "Eu não sou a Geraldine", cientificando-se ele que as duas gêmeas haviam trocado de identidade. Mas o pai da mesma está ali, à porta da pensão, para exigir satisfações de tudo que acontecera. Agora Geraldine/Jaqueane, que está grávida, é seqüestrada. Sucedem-se cenas de suspense, até mesmo desaparecendo o cadáver da banheira. A decisão de Jorge, porém, não se curva: "Nem a polícia me impediria de publicar meu livro, de recuperar minha mulher e assistir ao nascimento do meu filho". No cerco dos policiais, sente "confirmado: meu passe de viagem não tinha validade para retorno". Toma todas as providências para publicar o livro e para salvar "minha guria", ponderando o perspicaz personagem-narrador: "Bonnye e Clyde? Lampião e Maria Bonita? Não, Jorge e Jaqueane, os foragidos do Verde Vale". À pergunta desta: "Você ainda me ama, Jorge? Ainda ama nosso filho?" (após ela ter sofrido o ataque do tarado do passat), até o pícaro amolece: "Com essa também chorei. Mas dei um jeito de chorar escondido".
Finalmente na quarta parte, A Grande Noite, acontece a apoteose do "escritor", com o lançamento do seu livro, que faz entrar em cena o escritor José Endoença, e explicita a agudeza crítica (lembre-se Paulo Coelho): "Marketing, apenas marketing. O que vende não é qualidade, nunca foi. E quanto mais grotesca e apelativa, melhor". Segue-se, ainda, um "pós-lúdio", que concretiza mais acirradamente a intenção crítica do autor.
A técnica de relato em retrospectiva é lucidamente assumida já nas palavras iniciais: "Algumas semanas antes do momento crítico, começamos a morar no quartinho do crime". Versatilidade e fluência do narrador merecem destaque especial. Definir-se-á no relato algum momento "sério", alguma atitude ou retrato de ponderação? O leitor implícito criado pela narrativa não condiz com pessoa "séria", com leitor que exija tratamento de grandes e respeitáveis temas, com ações edificantes. Quem não estiver disposto a suspender toda a ferrenha racionalidade lógica, que tanto nos domina, não abra o livro. Ou o leitor se deixará guiar pela descontração da ironia, ou deixará a leitura de lado. Irresistível se impõe o fluxo ininterrupto da ação, dos acontecimentos, sucedendo-se suspenses, instigantes impulsos, que impedem interrupção de leitura.
Não obstante todo o caráter folhetinesco, picaresco, irreverente e irônico, impõem-se algumas imagens de bela criatividade. Na decisão inabalável de proteger e salvar a criança, quando "minha guria" estava grávida, toda a truculência violenta se contém: "Acontecesse o que acontecesse, eu ainda a teria em meus braços, provaria o açúcar de seu sorriso e de sua alegria..." Quando sente os policiais fechando o cerco, pondera: "O diabo soprava as faíscas do pavio, queria que o foguinho chegasse logo ao barril de pólvora". Mas o narrador irreverente não perde o estilo, mesmo em meio às enrascadas: "Um silêncio atroz me abateu por segundos, a perna curta da mentira chutava minha bunda". No entanto, após ter recuperado Jaqueline, o pícaro se emociona: "Também matei a saudade de Jaqueane (começava a me acostumar com o novo nome), bombardeando seu preciso ventre com uma inesgotável artilharia de carinhos".
Um Cadáver na Banheira é narrativa policial? É picaresca? É pura ironia e humor? É dramalhão mexicano? É sátira a Paulo Coelho? Ou se trata de irônico retrato da realidade do escritor? A narrativa de Tenfen nos faz refletir: o que torna um livro literário? Quais as razões por que um livro se transforma em sucesso de vendagem?
LAURO JUNKES Presidente da Academia Catarinense de Letras
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