quarta-feira, 19 de março de 2008

"Quem nasce no Brasil ou é brasileiro, ou é traidor"



Calma, leitor. Antes de pensar que esta se trata de uma frase tirada de um panfleto, preste atenção: ela foi dita por Lauro Muller, catarinense, engenheiro militar e político que morreu em 1926, no Rio de Janeiro. E por que esta frase está aqui? Vem acontecendo, desde novembro de 2007 (vem acontecendo porque é em fases) o I Seminário de Língua Alemã de Blumenau. O projeto deste evento foi encaminhado ao Ministério da Cultura e acontece, hoje, graças ao Petrobrás Cultural.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Há que ficar claro aos leitores que a questão da língua alemã no sul do Brasil não é somente séria, merecedora de revisões, como também mal estudada. Na verdade, os estudos parecem ter recém começado, mas de qualquer forma faltam aprofundamentos. Pensando nisso, talvez, que o Seminário de Língua Alemã veio ao mundo.

Pra quem não sabe, boa parte da região sul foi colonizada por imigrantes europeus. Oriundos de algumas grandes frentes regionais (Alemanha, Polônia, Itália, Ucrânia), esses imigrantes não somente deixaram seus países de origem como almejavam levá-los consigo para o Novo Mundo. Foi o que aconteceu na região de Blumenau. Os migrantes que por aqui chegaram depois da metade do século XIX não somente possuíam nacionalidade alemã, como tentaram manter o espírito alemão, o deutschtum, que numa tradução imprecisa significa germanidade.

Mas vivendo num país estranho, falando uma língua estranha, ainda que em comunidade, pode se imaginar o conflito vivido por estes novos moradores da América. De um lado, traziam a esperança de, finalmente, possuírem terras, bens econômicos, liberdades política e social (que na Alemanha andavam escassas) e poderem oferecer vidas melhores a si e aos seus filhos. Por outro, ficava a saudade de uma Alemanha civilizada, de literatura desenvolvida, de pessoas que entendessem o idioma que falavam, enfim, irmãos de sangue e pátria.

O PIONEIRISMO DE VALBURGA HUBER

A respeito desse tema, do dualismo constante vivido pelos imigrantes alemães que chegaram ao sul do Brasil, ninguém pode ser melhor referência do que Valburga Huber. Doutora em Língua e Literatura Alemã pela USP, foi a primeira pesquisadora a abordar o tema da literatura teuto-brasileira (teuto, que vem de teutônico, que abrange os demais povos de língua germânica que migraram para o Brasil na época). A dissertação de mestrado que virou livro, Saudade e Esperança – O dualismo do imigrante refletido em sua literatura, é o ponto de partida de uma série de novos olhares para essa realidade do imigrante alemão em terras brasileiras.

Em Blumenau, o idioma alemão foi oficial por quase cem anos. De 1850 a 1940, o alemão era oficial tanto na mídia impressa como nas escolas e na literatura dos blumenauenses. Poetas e escritores emigrados não fizeram somente muito sucesso entre as colônias alemãs brasileiras — mesmo porque a literatura que produziam estava diretamente ligada aos fatos da imigração — como muitos chegaram a fazer sucesso na própria Alemanha do início do século XX. A esse respeito, nada melhor do que ler e se deixar apaixonar pelas obras de Valburga Huber e Marcelo Steil, este que escreve nos anos de 1990 sobre a poesia imigrante, procurar entender do que na verdade se tratava esta produção literária que era tanto alemã quanto brasileira. Se não no idioma, mas certamente no espírito.

Com as Campanhas de Nacionalização do Ensino, impostas por Getúlio Vargas, não somente se perdeu o contato com esse idioma escrito, como aos poucos ele foi sendo deixado de lado até ser quase totalmente esquecido. Pois bem. Nos anos de 1940, institui-se que o idioma oficial de Blumenau é o português. E daí? Proibiram-se os jornais, fecharam as escolas e por um bom tempo se deixou de escrever literatura.

O BILINGÜISMO PESQUISADO POR MARISTELA FRITZEN

O leitor que veio até aqui pode imaginar o trauma causado pelas decisões meramente políticas, burramente políticas, que silenciaram não somente um povo, como também emudeceram uma cultura. Da década de 1940 até as décadas de 1960/70 temos o período que chamamos “silenciamento lingüístico”. Ou seja: por vinte, trinta anos, não se falou. Ou melhor: os então descendentes de alemães que por aqui viviam tiveram de reaprender a se expressar, dominar uma nova língua, novos costumes lingüísticos; tiveram de se tornar brasileiros.

Ou não. E quem oferece a negação é outra pesquisadora que merece aplausos. Maristela Fritzen apresentou durante o Seminário de Língua Alemã partes interessantes de sua tese de doutorado. Denominada “Ich kann mein Name mit letra junta und letra separada schreiben” (Eu consigo escrever meu nome com letra junta e com letra separada), o trabalho de pesquisa de Maristela descreve as experiência de bi e multilingüismo em escolas da região de Blumenau. O que fica claro é que mesmo o silenciamento provocado pelo Estado Novo conseguiu apagar os traços mais importantes da cultura alemã no sul do Brasil: seu idioma e as pessoas que o falam.

Se no século XIX tínhamos alemães que deixaram a Alemanha em busca de uma Terra Prometida, por assim dizer, no século XXI temos uma comunidade extensa que procura ser respeitada pelo idioma que ainda fala. É verdade que o alemão de Blumenau não é o mesmo da Alemanha, mas como frisa Maristela, “o português do Brasil é o mesmo de Portugal?”. A língua é viva, pois não.

Acontece que falar o “alemão de Blumenau” não é uma questão de prestígio. Isso, Maristela explica muito bem, colocando como línguas prestigiadas o inglês, o francês, o espanhol e até mesmo o alemão gramatical, aquele estudado em escolas alemãs. O dialeto que surgiu no Vale do Itajaí, este sofre com o processo de estigmatização da língua por não ter prestígio, por estar limitado a um grupo relativamente pequeno de falantes.

VOLTANDO AO SEMINÁRIO

É preciso voltar ao I Seminário de Língua Alemã de Blumenau para terminar este meu texto. É preciso dizer que este evento tem uma importância desigual para a compreensão histórica e social do que aconteceu no Sul do Brasil nos últimos cento e cinqüenta anos. É preciso parabenizar seus organizadores por terem reunido, numa mesma fala, três dos maiores pesquisadores da língua e da literatura alemã no estado de Santa Catarina.
Mas é preciso retomar um pouco da fala de Valburga Huber. Quando lhe foi perguntado se o uso do idioma alemão na literatura (sobretudo na poesia) era uma questão de mera sensibilidade ou uma prática política desses mesmos imigrantes alemães para que não perdessem o vínculo com o país de origem, a pesquisadora busca nos poetas de língua alemã lá do século XIX uma resposta precisa: ainda que escrevessem em alemão, eles já saudavam a nova pátria, o Brasil, suas riquezas naturais etc. como pertencentes a esta terra, como seus novos moradores.

E é aqui, finalmente, que se encaixa a frase-título desse texto. Ela foi dita por um desses descendentes de alemães que lutaram pelo país para o qual migraram, o Brasil. Os imigrantes vieram da Alemanha, é verdade. Mas quem sofreu com as diretrizes políticas do Estado Novo foram os seus filhos. Se queriam, por um lado, manter contatos anímicos com o país de origem, em momento proibiram que seus filhos se tornassem “brasileiros”. Pretenderam, na verdade, manter viva a cultura, mantendo-a acesa — o que não é problema nenhum se virmos as oktoberfests que acontecem em todo o sul do país, os “vales europeus”, os grupos de danças típicas alemãs. A verdade é que o Brasil foi o país que acolheu estes imigrantes quando seus países lhes davam as costas; de alguma forma, lhes eram agradecidos.

Aos poucos, a língua alemã volta a ser pauta de discussão nos meios educacionais e políticos de Blumenau. Felizmente. Não que ainda dê para recuperar o tempo perdido durante as campanhas de nacionalização, a Segunda Guerra Mundial, a repressão com que sofreram estas milhares e milhares de pessoas. O tempo passou e as marcas estão aí. Mas que seria realmente muito bom se se reconhecesse a brutalidade que aconteceu contra brasileiros, em território brasileiro, que somente não tinham o português como língua padrão, ah, isso seria realmente muito bom. Seria, principalmente, o primeiro salto contra o preconceito lingüístico: aquele que diz que quem não fala o bom e velho (velho mesmo) português gramatical deve ser varrido das faces deste país.


A respeito deste tema, já escrevi no artigo Nacionalismo: marcas de um silêncio que persiste,
publicado originalmente no Overmundo, em 2007. Como se pode ver aqui, trata-se ao mesmo tempo de uma afirmação daquele, contendo a sua negação.

3 comentários:

Unknown disse...

Grande Labes!

Cara... Uma hora dessas, temos que conversar!
Gostei muito do teu texto e de ter lido...
Aliás, o blog está fantástico, como era de se esperar!

Gostaria que visse o meu TCC, quando pronto. Ele raspa nessas questões também!
E aí, poderiamos conversar sobre isso, como com poucos é possivel.
E dessa conversar, partiríamos para outra, e para outra, que puxasse outro, levando a outra, como com poucos é possivel fazer!
Até me abateu uma saudade dos nossos papos!

Um grande abraço e parabéns pelo teu trabalho aqui!

Robert Thieme

Marcelo Labes disse...

Grande Lói.

Pois que eu soube através do Edos que o teu TCC já mudou de rumo desde a última vez que nos falamos. Sinceramente, achava que nenhum outro tema seria mais brilhante do que aquele, mas devo reconsiderar, imaginando que encontraste um.

Acho que essa conversa deve mesmo acontecer, mesmo porque a gente pode ir longe.

E esse espaço aqui é isso, cara. Muitas falas sobre muita coisa que, no fim, é uma coisa só.

Nos falamos?

Abraço no amigo.

Anônimo disse...

Gostei bastante de pensar nisso Labes. Foi o impacto de um tempo político. Perguntas que lhe farei pessoalmente.