Se me perguntarem, não saberei o que dizer. Longe da arrogância acadêmica — que sempre põe um nome em tudo — ou da inocência leiga, que ao contrário da outra chama tudo pelo mesmo nome, sinto que não consigo descrever este meu livro. Então penso: trata-se de um livro de poemas, é fácil. Mas do que são feitos estes poemas? Procuro no belíssimo texto da orelha, procuro no suntuoso posfácio e lamento: não sei.
Pois que poesia, aquela, onde terá ido parar? Fico muito feliz ao ler “De espantalhos...”, de
Mas vamos ao ponto: Falações trata de quê? Ah, filhinho, tem de tudo ali: dor-de-cotovelo, ranço operário, psicanálise de botequim. Penso na decepção que terá o meu leitor que, procurando, não encontrará o que talvez quisesse ler. Afinal, trata-se de um livro de poesia, não é? E da poesia, que se espera?
Bom. Primeiramente, da poesia se espera que seja escrita por um poeta. De preferência, um tipo paspalho, feio, mas charmoso; perfumado e triste, com ar galanteador. O poeta, vamos analisar, não pode ser terreno. Não pode ser gente; gente que é, tem de parecer outra coisa. Um semideus das letras, por exemplo. Alguém que saiba lidar com a palavra, que durma com a palavra, acaricie a maldita da palavra enquanto sopra no ouvido da amante uns versos pré-fabricados.
E da poesia, acreditem, se espera que faça sentido. Que tenha começo, meio, fim; personagens, um narrador bondoso. Da poesia se espera que se torne prosa Sabrina de livro mofado no canto escuro do sebo. Que fale de amor, principalmente. Ou fale de coisas belas: paisagens bucólicas, finais felizes, céu azul de inverno e chocolate quente? Não sei. Que tipo de belo, o senhor pode me especificar?
Para se ler poesia, tem de ter livro nenhum ao alcance das mãos. Talvez assim dêem uma chance ao coitado. Ué, mas não é assim? Então que se leia o jornal diário, a revista da semana, o livro relançado ano a ano de que todo mundo fala e que virou filme. Sendo o último da estante, o mais barato no sebo, recomendado com insistência torna-se um livro lido.
Escrever versos passou a fazer sentido para mim depois de conhecer Manuel Bandeira. Mas o sentido estava no Bandeira fazer versos, não eu. Ali pude vislumbrar a felicidade do poeta (galanteador mesmo, poemas de amor mesmo) que punha em poucas linhas aquilo que lhe vinha à mente e que, ainda por cima, se podia chamar poesia. Depois de um tempo, Bandeira tornou-se estereótipo de movimento modernista, charminho de intelectual idoso querendo pegar moça bonita.
Então vieram os pós-modernistas, principalmente os mais de perto, que respiram o meu mesmo ar úmido. Ali vi que havia liberdade. Liberdade mesmo. Liberdade de rir da fábrica e dos operários da fábrica; liberdade de rir da mãe, do pai, da bursite, da Fluoxetina. E ri com eles. Muito depois deles, é verdade, mas o meu riso quase me afogou a mente. No entanto, ri sozinho. Já não era mais tempo de rir: chegara a hora da caridade.
Lia os irônicos e me decompunha. Estava ali com pessoas que pareciam arranjos de mesa de casamento, floridas e perfumadas, declamando entre si poemas que se tivessem sido lidos, antes, por uma criança jamais teriam sido dispostos ao público: a criança os censuraria. A essas entidades de amor mútuo, denominadas sociedades de escritores, cabe a censura de Mário de Andrade: “Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só”. Me zanguei: vou rir, nem que seja sozinho, mas vou rir o meu próprio riso e escrever o que eu quiser.
Então chegaram, consequentemente, o non-sense e o foda-se. Poesia é o seguinte: está ou não no poema. O poema pode ou não ter poesia. Poema com poesia é poema; poema sem poesia é exercício caligráfico. E lá fui me meter a escrever o que me vinha à mente. E escrevi. Compartilho que minha letra melhorou muito nos últimos anos. Mas chega um momento em que tem de se decidir: afinal, a coisa anda ou não anda?
Andou. Falações está no prelo, no último lance de escada, abrindo a porta da minha casa para dizer que chegou e eu não sei como recebê-lo. Filho? Amigo? Irmão? Prefiro estabelecer com ele relações trabalhistas: eu trabalho, tu usufruis disto. Porque dizer de um livro de poemas que tem de ser escrito por um poeta já decepciona, quando o vivente se pergunta “e poeta, o que é?”. E se for mais adiante, vai quebrar a cara ao se perguntar do que é feita a poesia.
Mas está chegando. Abrindo a minha e a tua porta, leitor. Se tiveres paciência para procurar ali nas entrelinhas um vácuo, talvez tu o encontres. É nesse vazio que está todo o sentido de escrever. Um vazio meu, por vezes compartilhado, que não me deixa viver em paz, que me faz perder o dia atrás de um registro, um cheiro, que seja um toque: algo que me permita borrar a folha branca e suspirar: “está feito”. Mas não todos os dias, que fique claro, que eu tenho mais o que fazer. Alguns dias, aqueles dias.
Clamo ao leitor que me responda: afinal, este livro trata de quê? E já adianto que é bem mais fácil falar dos livros dos outros do que do seu próprio. Talvez pela obviedade (afinal, eu o escrevi e, em algum momento, foi óbvio tê-lo escrito), talvez pelo espanto de encontrar ali mais do que se tivesse buscado. Mas te digo: é um assombro!
Logo entro em maiores detalhes.
5 comentários:
Posólha guri... gostei muito do que li aqui nesta madugada gelada.
Tô lendo o Viegas, esperarei o teu.
Abraço da Fatima.
Olá, Fátima. Bom que gostaste. E espero que a leitura de "De espantalhos" te seja tão reveladora quanto foi a mim.
Grande abraço.
Olá querido!!
Muito bom o texto. Como sempre exercitando o dom das letras!
Ah...esqueceu de mim, né? Sou o Rubens, trabalhamos na locadora, amigo na clara, enfim, passa lá no meu blog!! hehe
Talvez a poesia não tenha mesmo sentido (já há pouco q o tenha). às vezes a gente se enamora por ela. e mesmo assim ela dá na gente um pé na bunda, daqueles bem dados. às vezes tão forte, joga a gente pra fora de si mesmo. e daí eu deixo com a epígrafe q encerra o seu blog. q ele entende bem mais de poesia do que eu.
De fato, Rodrigo, o que dizer desse sentido que se busca e que, de fato, simplesmente não há. E quando nos joga, quando dizes, para fora de nós mesmos, é aí que podemos vislumbrar um quem sabe lampejo de significação. No mais, é isso mesmo.
Grande abraço.
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